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Sobre cegos, jardins e coincidências significativas


Em minha última conversa com o público terminei citando o clássico Cândido ou O Otimismo, de Voltaire, com a frase “é preciso cultivar nosso jardim”.

Enquanto me aprofundava no tema ‘cegueira’ se essa frase passasse pelos meus olhos, uma típica pergunta que me faria seria — Os deficientes visuais são capazes de cultivar seus próprios jardins? E outras: como eu ou qualquer apreciador da natureza se sentiria se não pudesse mais pôr a vista sobre o próprio jardim? Qualquer jardim.

Questões como essas me nortearam rumo ao mundo dos cegos, que perderam a visão ao longo da vida, mas movidos por uma capacidade transcendental de reconstrução se reabilitaram. Porque fazendo parte de um corpo social que destaca apenas as conquistas é preciso ser praticamente sobre-humano para saber lidar com perdas. Seguidores do modelo norte-americano, que divide mulheres e homens entre ‘winners e losers’, somos desensinados desde pequenos que perder faz parte da vida.

Ainda mais quando a perda é indubitavelmente individual. Quando a perda é a visão não há maneira de compartilhá-la. É sua, exclusivamente sua. Talvez por isso, em um primeiro momento aqueles a quem apagam-se a luz dos olhos identificam a cegueira como a própria morte. Doença genética, glaucoma, acidente de carro ou de moto, retinopatia diabética, causa desconhecida ou violência doméstica. O diagnóstico é um só. Não há como se preparar para as sombras dos sem luz.

Ao fechar os olhos ao mundo fecham-se em suas próprias casas maquinalmente. Se para toda ação há uma reação, a cegueira impõe o cárcere entre as paredes do lar, refúgio de proteção, e as portas e janelas da alma trancadas pelos ferrolhos da mente: vergonha, vulnerabilidade, medo, impotência, julgamento por parte da sociedade. Sair às ruas impele a sensação forjada de que inúmeras pessoas estão mirando com os olhos e apontando os dedos enquanto mal avaliam — Ali vai um deficiente visual.

Em todas estas histórias de vida repete-se o meio de transpor os novos limites. Uma mão amiga. Uma mão que acolha, que recolha o indivíduo inerte, e diga — Precisamos encontrar ajuda. E por essas mãos o novo cego é guiado para um centro de reabilitação.

Como auxílio de profissionais ocorre o primeiro esvanecer das névoas que cobrem suas vistas. Faz-se o tempo de perceber que a cegueira, de fato, não é compartilhável, mas a reconstrução de uma forma de viver se dá por muitas mãos. Afasta-se a ideia de que a jornada é solitária.

Esta força conjunta restabelece a prática das atividades diárias, a volta aos estudos, prepara o ser a dar, pela segunda vez desde que veio ao mundo, os primeiros passos independentes. É fundamental que os familiares, que agem com as melhores intenções e instinto protetor, entendam que a bolha criada por eles não é escudo, na verdade é mais uma barreira entre o cego e o horizonte ilimitado que o aguarda.

A primeira atividade realizada efetivamente a sós é a primeira etapa da revalidação como pessoa capaz e autônoma. É a explosão do sentimento de liberdade há muito não sentido. O primeiro banho. A primeira caminhada pela calçada. A primeira compra de Coca-Cola na padaria. O primeiro retorno à casa da mãe. Evoluir do tatear no escuro para ganhar as ruas da cidade.

Olhando para dentro de si enquanto percebem o entorno aguçam o uso dos outros sentidos e do poder criador da mente humana. Ter a habilidade de reconhecer lojas de sapato, farmácias e padarias pelo olfato. Decorar obstáculos, orelhões, postes, bancas de jornal. Usar o ralo da praça matriz como guia, o calor dos raios de sol como senso de direção e as correntes de ar nos cruzamentos das ruas delimitando os quarteirões. O desafio de retomada da circulação pela cidade diante da escassez de investimentos públicos em acessibilidade é louvável. E mais, estágio imprescindível na reconquista da possibilidade de uma vida normal.

Estudar, ler livros, assistir a filmes, cursar faculdade, aulas de teatro. Namorar, dançar, ser atriz, escritor de stand-up, recitar poesias inteiras. Participar de protesto contra a ditadura, casar-se, ter filhos. Pilotar moto, jogar futebol, ser campeão de natação, mergulhar no fundo do mar. Ter uma vaga criada em uma grande empresa, não por ser deficiente visual, mas por lutar pelos seus direitos. Ser o único auditor cego em uma empresa com mais de cinco mil funcionários. Comprar a casa própria, viajar, viver. Descobrir que nós, seres humanos, diante de grandes desafios emanamos ainda mais luz.

Tenho percebido frequentemente fatos que parecem casuais, mas estou convencido de que não são eventualidades, sorte ou acaso. Aconteceu mais uma vez antes de vir para a FLIR (Feira do Livro de Resende). Já no processo de pesquisa para a nova obra, tenho regularmente 3 ou 4 livros sobre a mesa de cabeceira. No entanto, inspirado por vir participar de um evento literário me senti instigado a buscar um livro de literatura, um clássico. Colhi das estantes um recém adquirido, fato raro, e trouxe comigo para Resende o Gattopardo, de Tomasi di Lampedusa. E já nas primeiras páginas encontro estes dois parágrafos:

“Mas o jardim, contido e macerado entre as suas barreiras, exalava perfumes untuosos, carnais e suavemente podres, como os aromáticos líquidos da decomposição destilados pelas relíquias de certas santas; as cravinas sobrepunham seu cheiro apimentado ao perfume protocolar das rosas e ao odor oleoso das magnólias que pendiam pesadas nos cantos; leve, corria por baixo destes o perfume de hortelã misturado ao cheiro infantil da acácia e ao aroma confeitado da murta, e por cima do muro laranjeiras e limoeiros transbordavam o perfume de alcova das primeiras flores.

Era um jardim para cegos: o olhar era constantemente ofendido, mas o olfato podia extrair dele um prazer forte embora não delicado.”

É isto. Há jardins para cegos e eles podem cultivá-los.


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